à deriva?
Vi-o, pela primeira vez, no meu percurso semanal das quartas-feiras na cidade onde estudei durante quatro anos. Surpreendeu-me o contraste entre o aspecto imundo e maltratado e o olhar doce. Um olhar onde não se evidenciavam marcas e mágoas da vida. Essas notavam-se na barba hirsuta e suja, no cabelo comprido onde não passava um pente há muito ou nas roupas que usava. Vestia umas calças de ganga ruças e gastas, marcadas pela sujidade acumulada, e um pullover azul-escuro. Talvez já tivesse tido outra tonalidade de azul mas naquele momento era escuro.
Era alto e bastante magro. Nunca o vi conversar nas ruas e poucas vezes o vi sentado num muro não muito longe da minha casa. Era frequente vê-lo a andar com o passo estugado como quem tem um caminho a percorrer e um horário a cumprir.
Encontrar vagabundos ou mendigos na rua é, nos dias que correm, um lugar-comum. Para mim, naquela altura, não era. Passou a fazer parte dos meus dias e quis saber quem era. Carregava consigo muitas histórias, talvez mitos. “O que vês são marcas de um amor perdido”, disseram-me. Não sei, talvez não fossem.As versões que me contaram nem sempre eram coincidentes. Disseram-me ter sido filósofo, professor, arquitecto. Disseram-me que tinha sido abandonado ou traído por uma mulher que o trocara por outro amor. Numa outra versão a sua amada teria falecido ainda jovem. O aspecto comum a todas as versões era o sofrimento por amor e essa característica, que apenas se encontra em lendas ou nos heróis dos romances, dava-lhe uma aura especial.
Nunca me pareceu perigoso e tão-pouco tinha ar de louco. Aparentava viver calmamente num mundo que era seu. Por vezes, sorria-me e cumprimentava-me, mais com a expressão do que com a voz. Não sei se o fazia com as outras pessoas. Provavelmente sim, mas nunca perguntei. Era um segredo que eu preferi guardar.