sexta-feira, 25 de maio de 2007


à deriva?


Vi-o, pela primeira vez, no meu percurso semanal das quartas-feiras na cidade onde estudei durante quatro anos. Surpreendeu-me o contraste entre o aspecto imundo e maltratado e o olhar doce. Um olhar onde não se evidenciavam marcas e mágoas da vida. Essas notavam-se na barba hirsuta e suja, no cabelo comprido onde não passava um pente há muito ou nas roupas que usava. Vestia umas calças de ganga ruças e gastas, marcadas pela sujidade acumulada, e um pullover azul-escuro. Talvez já tivesse tido outra tonalidade de azul mas naquele momento era escuro.
Era alto e bastante magro. Nunca o vi conversar nas ruas e poucas vezes o vi sentado num muro não muito longe da minha casa. Era frequente vê-lo a andar com o passo estugado como quem tem um caminho a percorrer e um horário a cumprir.
Encontrar vagabundos ou mendigos na rua é, nos dias que correm, um lugar-comum. Para mim, naquela altura, não era. Passou a fazer parte dos meus dias e quis saber quem era. Carregava consigo muitas histórias, talvez mitos. “O que vês são marcas de um amor perdido”, disseram-me. Não sei, talvez não fossem.As versões que me contaram nem sempre eram coincidentes. Disseram-me ter sido filósofo, professor, arquitecto. Disseram-me que tinha sido abandonado ou traído por uma mulher que o trocara por outro amor. Numa outra versão a sua amada teria falecido ainda jovem. O aspecto comum a todas as versões era o sofrimento por amor e essa característica, que apenas se encontra em lendas ou nos heróis dos romances, dava-lhe uma aura especial.
Nunca me pareceu perigoso e tão-pouco tinha ar de louco. Aparentava viver calmamente num mundo que era seu. Por vezes, sorria-me e cumprimentava-me, mais com a expressão do que com a voz. Não sei se o fazia com as outras pessoas. Provavelmente sim, mas nunca perguntei. Era um segredo que eu preferi guardar.




segunda-feira, 21 de maio de 2007

Os outros

Quem são os outros?
São os teimosos. Os apáticos. Os incompreensivos. Os incompreensíveis. Os agressivos. Os lamechas. Os violentos. Os cobardes. Os ignorantes. Os que não conseguem entender nada. Os que pensam que entendem tudo. Os que pertencem a um clube que joga mal. Os que lutam por um partido que não defende os nossos interesses. Os ateus. Os fanáticos por uma religião que não responde às nossas questões. Os alienados. Os egoístas. Os defensores de causas perdidas. Os que amam demais. Os que não sabem amar. Os que se auto-elogiam. Os que nos cansam por serem derrotistas ou derrotados. Os que gostam de música sem qualidade. Os melómanos. Os que se deliciam com literatura light. Os que lêem livros indecifráveis. Os pessimistas. Os sonhadores. Os pedantes. Os incompetentes. Os que só vivem para o trabalho. Os que trabalham o mínimo possível. Os autoritários. Os submissos. Os maníacos das novas tecnologias. Os desajustados num mundo em franco progresso tecnológico. Os que fogem ao fisco. Os que são excessivamente cumpridores. Os condutores perigosos. Os que atrapalham o trânsito. Os que nunca se interrogam. Os que têm sempre dúvidas. Os que têm dívidas. Os que não sabem educar os filhos. Os que não querem ser pais. Os vegetarianos. Os defensores de alimentação biológica. Os amantes de fast-food. Os avessos a pratos exóticos. Os que só pensam em trocar de carro. Os que demoram o triplo do tempo a chegar ao emprego de autocarro. Os cravas. Os demasiado liberais. Os excessivamente conservadores. Os que têm o mesmo estilo a vida toda. Os que não conseguem decidir que estilo adoptar. Os maníacos do desporto. Os sedentários que não saem do sofá. Os amantes da TV e das pantufas enxadrezadas. Os faladores incansáveis. Os silenciosos incorrigíveis. Os contadores compulsivos de anedotas. Os que não têm sentido de humor. Os imigrantes. Os xenófobos. Os corruptos. Os que conseguem o emprego por cunha. Os empresários. Os desempregados. Os que nos bajulam. Os que não nos admiram.

Quem são os outros?
São os culpados por tudo o que de negativo nos acontece ou acontece à nossa volta. Por culpa deles há miséria, há violência, há acidentes na estrada e no trabalho, há desemprego e recessão económica.

Quem são os outros?
São os que estão errados porque, naturalmente, nós temos sempre razão.

domingo, 20 de maio de 2007



"A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós desse acontecer.
Vergílio Ferreira, in Nome da Terra.












sábado, 12 de maio de 2007

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Liberte-se!

A APED lançou uma campanha para pedir a liberalização do horário de funcionamento das grandes superfícies. Parece que seis dias por semana com porta aberta até às 23:00 e nos domingos até às 13:00 não é suficiente.
Por falta de coragem para assumir que pretende explorar (ainda mais) os consumidores sugando-os até ao tutano, invoca razões muito nobres e repletas de preocupações: combate ao desemprego, defesa das mulheres trabalhadoras (as compras são um exclusivo feminino?!?) e até o equilíbrio do trânsito (verdade verdadinha verdadeira!! Quem diria que era tão fácil de resolver?)
A APED usa a expressão “Liberte-se”. E eu também!
- Liberte-se do apelo ao consumo desenfreado e irresponsável;
- Liberte-se da ideia da ida às compras como o grande momento da semana;
- Liberte-se do mito do hipermercado como o lugar ideal para os passeios familiares;
- Liberte-se e use as tardes de domingo e os feriados para usufruir de momentos de qualidade: passeie ao ar livre, vá à praia, vá ao cinema, visite museus, leia um livro, converse com os seus familiares e amigos, conte histórias aos seus filhos, pratique desporto, descanse. Faça qualquer coisa. Mas, pelo menos por umas horas, liberte-se das armadilhas que os especialistas de marketing, inocentemente, prepararam para si.


segunda-feira, 7 de maio de 2007

Moralidade por decreto

"O Governo chinês anunciou, esta semana, uma nova legislação que proíbe os seus funcionários de terem amantes, sob pena de despedimento. A ideia é não só punir uma «falta de conduta» como prevenir a corrupção. Outros «modelos de moralidade» são exigidos: não abandonar a família ou não violar a política do filho único.» Visão, nº739





Se o fruto proibido for, de facto, o mais apetecido os despedimentos irão disparar em flecha.

domingo, 6 de maio de 2007

Dia da Mãe
Detesto generalizações. Todas. Sem excepção. Quer tenham tendência a denegrir ou a enaltecer uma raça, um povo, uma profissão, um estatuto, uma condição social ou outras. A condição de mãe não foge à (minha) regra.
No dia da mãe criam-se poemas ou usam-se os de poetas consagrados e circulam pela Internet imagens e quadros alusivos ao dia. E generaliza-se.
Fala-se da condição de mulher-mãe como se fosse sinónimo de generosidade, altruísmo, alegria, partilha e uma quantidade inesgotável de sentimentos positivos. Neste dia, toda a gente se esquece que nem todas as mulheres que têm filhos são boas mães. E não penso apenas nas mães más, horríveis, sem carácter e sem escrúpulos que de vez em quando (com maior frequência do que seria desejável) saltam para as páginas dos jornais e preenchem os noticiários da rádio e da televisão. Toda a gente tem consciência, quanto mais não seja de tempos a tempos, que essas existem. Penso noutro género de mãe: egoísta, negligente, desinteressada. O tipo de mulher que apenas é mãe porque é isso que a sociedade espera que ela seja mas que, a partir do momento em que coloca uma vida no mundo, encara essa criança apenas como uma pessoa pequena que está em casa e precisa de alguns cuidados, mas pouco mais.
Há, ainda, as mães que pretendem que os seus filhos sejam reflexo dos seus desejos. Ambicionam que os filhos sejam social e profissionalmente tudo o que elas não tiveram condição ou possibilidade de ser, sem que haja o mínimo respeito pela individualidade e carácter da criança. Sem que o conceito de felicidade da criança seja tido em consideração. E pior: mostrando-lhe a frustração e o desprezo quando os objectivos que lhe impôs não são alcançados.
Estas mães passam, muitas vezes, despercebidas. Por vezes, até são consideradas mães normais ou boas mães, mas os seus filhos entendem os sinais que elas lhes enviam e se no primeiro caso vão sentindo a sensação de abandono, no segundo sentem a humilhação pela raiva e decepção que provocam nas duas progenitoras.
E é do conhecimento geral que as maiores marcas não são deixadas por uma palmada.
Não desejo, por isso, um dia feliz a todas as mães do mundo. Apenas o desejo à minha e a todas as outras boas mães.