segunda-feira, 27 de agosto de 2007



futuro próximo


Se as webcam e o skype não nos salvarem, receio que num futuro próximo sejamos incapazes de verbalizar, o que quer que seja, para comunicarmos entre nós.
Conhecemos os amigos nos chats e é também aí e no Messenger que convivemos com eles, flirtamos e namoramos. Sabemos os hábitos, preferências, opiniões e últimas notícias sobre os nossos familiares e amigos consultando o hi5, os blogues ou os espaços pessoais no myspace.
Os telefonemas são muitas vezes substituídos por sms, havendo kits que permitem um envio monstruoso de mensagens diárias.
Informações mais detalhadas, notícias ou curiosidades são enviadas por email e deixámos de ter um ouvido com quem partilhar a primeira gargalhada espontânea ao aprender uma nova anedota.
Quando nos deslocamos em viatura própria, abastecemos num posto self-service, havendo a possibilidade de fazer o pagamento com cartão, ainda na bomba. Levamos o GPS que numa voz autoritária nos ordena, com rispidez militar, o caminho a seguir e deixa de ser necessário encontrar um autóctone com sentido de orientação e disponível para dar a informação pretendida.
No local de trabalho não vamos ao bar e optamos pelo café, a água, as sandes e os chocolates da máquina colocada junto à escadaria.
Podemos almoçar sem ter de abrir a boca, excepto para degustar a iguaria escolhida, num restaurante (também ele) self-service em que, à entrada, nos apontam o cartão como se de uma arma se tratasse. Quando nos dirigimos à caixa, olhamos para o valor indicado na máquina registadora e colocamo-lo na mão estendida do empregado que, muitas vezes, nem profere um qualquer som gutural que simule ser um cumprimento.
Comportamento semelhante temos, e têm para connosco, quando vamos ao supermercado ou a uma grande superfície, compramos roupas ou livros. Podemos, ainda, optar por fazer todas as compras online e, nesse caso, não só poupamos a voz como também, evitamos cruzar-nos in loco com qualquer espécime humano.
Para nos mantermos informados, retiramos o jornal de distribuição gratuita, depositado numa caixa à entrada do metro, ou recebemo-lo num semáforo, entregue por uma mão sem rosto e sem voz. Para os mais sedentos de informação, existe a possibilidade de consultar as edições online ou ainda proceder à assinatura mediante um pagamento.
Tratamos da nossa situação económica e fiscal ou do pagamento de contas através de um Multibanco ou da Internet.
É, também, a partir de casa que navegamos nos sites que nos permitem comprar bilhetes para assistir ao mais variado tipo de espectáculo ou ir ao cinema. Com o código atribuído basta dirigirmo-nos a uma máquina ou à bilheteira onde o trocamos pelo bilhete de ingresso no espectáculo desejado.

Passamos, desta forma, um dia “normal”, com uma vida “normal” de convívio, trabalho e entretenimento, sem necessitar proferir mais do que dois ou três monossílabos ou, em situações mais graves, nem isso.
Se o corpo do Homem tem a capacidade de se adaptar ao meio e circunstâncias envolventes, seremos em breve “humanos” com dedos quadrados e achatados que apenas serão capazes de, com um certo esforço e desagrado, emitir alguns grunhidos.







domingo, 26 de agosto de 2007


sobre.... a insignificância


Regressar a um local que outrora conheci, e abandonei durante anos, tem o condão de me dar a saber a medida exacta da minha insignificância.
Quando, à chegada, avisto a degradação dos prédios que já então ameaçavam ruir, a cal branca quase ausente das paredes ou a calçada gasta pelos transeuntes penso que nada mudou (Claro que não! Quem se atreveria a fazer alterações na minha ausência?!).
Decido, então, visitar os espaços que era “os meus” e, por momentos, inverter o sentido dos ponteiros do relógio.
Na cafetaria que servia uma bica deliciosa, em vez de expositores com inúmeras variedades de chás e cafés, existem agora folhetos com imagens de praias, monumentos e camelos a caminhar, resignadamente, no deserto. O sorriso da nova empregada já não vende bons momentos com sabor a café mas promessas de férias inesquecíveis.
A pequena tasca, muito modesta mas com comida caseira deliciosa e em conta, onde o sorriso da proprietária e cozinheira era o acompanhamento perfeito, deu lugar a mais uma casa de pizas, hambúrgueres, sandes e afins, servidos a velocidade de cruzeiro por empregados–robô que atendem sem olhar para o cliente.
Na livraria, caríssima mas com uma oferta fabulosa, já não podemos encontrar o conforto que só o papel e uma belíssima história oferecem e encontramos, agora, sonhos de betão a preços exorbitantes.
Os rostos que se cruzam comigo na rua são outros… Quando revejo algum que reconheço, apesar das incontornáveis marcas do tempo, apetece-me agradecer-lhe por se manter no mesmo lugar e perguntar-lhe o que aconteceu, quem permitiu que o tempo passasse por ali sem me consultar…






Excerto de uma deliciosa crónica de Carlos Drummond de Andrade






Calça literária



“É assíduo leitor de blusas, camisas, saias, calças estampadas. Não lhe escapa um exemplar novo. Parece desligado, e observa tudo. Segundo ele, as peças de indumentária, masculina e feminina, ostentando símbolos e nomes de universidades americanas, manchetes, páginas de jornal, retratos de Pelé e Jimi Endrix, apelos ao amor que não à guerra, etc…, há muito deixaram de ser originais. Constituem invólucros rotineiros de pessoas de qualquer idade. A gente estranha é uma camisa inteiramente nua de dizeres ou figuras, a roupa que não diz nada, só roupa. Hoje, lê-se mais nos tecidos do que nos livros, e não é ler apenas, é ver cinema e televisão, pois os corpos ao se moverem, dinamizam as figuras estampadas, o que, de um modo ou de outro, contribui para a cultura de massas. Informa:
- Estou pensando em aproveitar esse material para fins especificamente didácticos. Através dele ensinar Geografia, História, Matemática, Medicina de Urgência, Imposto de Renda, Ortografia Desmistificada, essas coisas. O indivíduo cobre-se e vai distribuindo ciência. Ou aprendendo. Vinte minutos no ónibus – que aula! Classes ao ar livre, na feira, na fila. Escola dinâmica. (…)” Carlos Drummond de Andrade, in Para Gostar de Ler







imagem daqui