quinta-feira, 29 de junho de 2006

Verdade


Verdade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar.
Cada um optou conforme seu capricho,
sua ilusão, sua miopia.

(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 25 de junho de 2006

de... passagem


Li há uns anos (muitos anos!) uma crónica que comentava o comportamento dos peões nas passadeiras. Nessa altura ainda eu não era condutora mas lembro-me que me diverti com a visão do cronista, que não recordo quem era, embora tenha suspeitas. Em traços muito gerais, dizia ele, que frequentemente o transeunte abranda o passo quando atravessa uma passadeira e faz tudo aquilo que não se lembra de fazer quando passa noutro local e a este propósito desfilava um rol de exemplos bastante caricatos.
Agora que sou condutora e que tenho uma visão privilegiada sobre o assunto, confirmo que o cronista exagerou muito pouco na sua descrição. Observo muitas vezes que o comum dos peões quando se encontra sobre a passadeira, com um ou vários carros e os respectivos ocupantes à espera que ele atravesse a via, se sente tomado de um tal poder que o impele a prolongar o mais possível aquela travessia. Frequentemente, fá-lo a olhar para o condutor com uma expressão de orgulho.
Também há os que correm na passadeira até terem a certeza que estão perante um veículo que parou para os deixar atravessar e nesse momento, talvez vencidos pelo cansaço, reduzem drasticamente o passo e o que era uma correria, certamente por pressa de chegar a algum local, se torna num descontraído e vagaroso passeio contemplativo.
Este prazer em atravessar quando se têm automóveis à espera é ainda mais notório em peões que aguardam pacientemente junto da passadeira enquanto olham para a esquerda e a direita, confirmam que não há qualquer vestígio de trânsito e permanecem quietos e ledos até que um carro se aproxima e só nesse momento resolvem atravessar, por vezes lançando um olhar ameaçador ao condutor como quem diz: “Calminha! Nem te atrevas a avançar que agora passo eu!!!” - assim mesmo neste tom, pois, como toda a gente sabe, em discussões as ameaças ocupam o lugar das fórmulas de delicadeza e é tudo “tu cá, tu lá”.
Este comportamento terá, certamente, uma explicação psicológica quiçá sociológica. Sendo áreas que não domino, não me atreverei a tecer teorias… Suspeito mesmo que haverá alguma comissão a quem tenha sido atribuída essa tarefa, mas não deixa de ser um comportamento que me diverte... ou que me irrita, consoante o estado de espírito do momento.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Respondendo à questão do dia



Não, não vou deixar de trabalhar
nem alterar a minha agenda
para assistir ao jogo de futebol





Dúvida metódica


Quando somos mais sinceros?

- quando num acesso de fúria proferimos palavras duras com o intuito de ferir

ou

- quando acalmamos as emoções, organizamos os pensamentos e medimos as nossas palavras sem esquecer o efeito que podem provocar?


terça-feira, 20 de junho de 2006

TPC - tempo para convívio

O Ministério da Educação propôs que os trabalhos de casa sejam realizados na escola e os pais e encarregados de educação aplaudiram. Todos alegam razões muito nobres:
- terminar com um factor de discriminação, pois há crianças cujos pais não têm capacidade para fazer o acompanhamento das tarefas escolares;
- maior competência dos professores para a realização desta tarefa, nomeadamente, no que respeita à aquisição de métodos de estudo adequados;
- evitar a sobrecarga das crianças que, após um dia aulas e frequentemente outras actividades extra-curriculares, chegam a casa extenuadas;
- dar às famílias a possibilidade de usufruir de um tempo de qualidade com os filhos, evitando o desgaste que a realização conjunta dos trabalhos escolares provoca.
À primeira vista, até parecem boas razões para que os malfadados trabalhos sejam realizados na escola mas esse tempo que passa a estar à disposição das famílias para convívio familiar será, de facto, aproveitado? Ou será apenas mais tempo dedicado às telenovelas e ao futebol, por parte dos pais, e à PlayStation, aos Morangos e às conversas em chats, por parte dos filhos? É inegável que esta situação simplificará a vida aos encarregados de educação que deixarão de ser alertados para o facto de os filhos não realizarem os trabalhos de casa. É óbvio que muitas famílias aproveitarão para se sentirem ainda mais desresponsabilizadas se a criança não está a responder de forma positiva às aprendizagens. Afinal… essa responsabilidade cabe à escola… Quando penso nesta questão, não consigo deixar de estabelecer um paralelo com os casais divorciados. Passo a explicar.
Toda a gente conhece as queixas de uma mãe divorciada que trata da educação do(s) filho(s) sozinha e que embora solicitando a presença ou ajuda do pai não vê este pedido realizado mas que se confronta com a felicidade do filho que, após ter sido deixado esquecido durante semanas, entra em casa radiante com a bicicleta nova que o pai lhe ofereceu. Aquela bicicleta que a mãe tencionava oferecer apenas no próximo Natal, se o comportamento e o aproveitamento escolar fossem merecedores, mas que o pai lhe ofereceu apenas para se redimir das suas ausências.
A escola passará, desta forma, a ser a mãe presente que exige, que educa, que ensina que é preciso esforço para merecer aquilo que se deseja. A família continuará a ser eternamente o pai ausente que apenas quer saber as notícias felizes, que oferece prendas, que dá a ilusão de que tudo se alcança sem que seja necessário lutar para isso.
Será desta forma que as crianças se aproximarão da essência da escola e atingirão todos os ensinamentos que se pretendem transmitir? Não creio…
foto de Robert Doisneau

E se me bastasse...


E se me bastasse…
… admirar o azul do céu…
… sentir na pele o calor do sol…
… deixar-me embalar pelo bater das ondas…

E se me bastasse…
… respirar o aroma das flores…
… escutar o som do vento nas folhas…
… contar as estrelas que me servem de tecto…

E se me bastasse…
… imaginar-me a sonhar sobre as nuvens multiformes…
… sentir o cheiro da terra molhada…

E se me bastasse…
… viver cada momento sem me refugiar no “antes” e sem temer o “depois”?